quinta-feira, 2 de junho de 2011

Como o gato bebe água




Por Fernando Reinach
"Se o suspiro da fã mudou minha maneira de observar Caetano Veloso, essa descoberta aumentou meu prazer de observar um verdadeiro gato bebendo água. É para isso que serve a ciência" Fernando Reinach é biólogo. Artigo publicado em "O Estado de SP":

A mão largou o violão e abraçou o copo. Foi num show de Caetano Veloso. O copo tocou os lábios e assim que o pomo de adão voltou à sua posição inicial, indicando o fim do gole, ouvi um sussurro feminino suficientemente alto para ser ouvido no palco: "Gato!"

Foi essa a lembrança que me veio à mente ao ler o relato de como os verdadeiros gatos, aqueles com quatro patas e sete vidas, bebem água. O método utilizado por esse animal, tão elegante e arredio quanto o
cantor na imaginação de suas fãs, é muito mais sofisticado que o utilizado pelos seres humanos. E, apesar de ter sido observado por milhões de seres humanos nos últimos milênios, somente agora foi investigado pelos cientistas.

Todos os animais necessitam de água. A maioria vive nos mares e rios e não precisa lidar com a força da gravidade. Cercados de água, basta abrirem um orifício para serem inundados. Mas para a minoria que vive
no ambiente terrestre, a gravidade é um problema. A água, como todo líquido que se preza, acumula no fundo dos recipientes, um copo, lago ou rio, e necessita ser transportada para o interior da boca contra a força da gravidade.

Poucos, como nós, podem contar com a ajuda das mãos. Muitos aspiram a água, seja com o nariz (elefantes), seja com a boca (cavalos, vacas, ovelhas). Outros, como os cães e os felinos, são incapazes de
controlar seus lábios de modo a fechá-los completamente. Para esses animais, aspirar ou chupar o líquido é impossível.

A solução é utilizar a língua. Os cães mergulham a língua no líquido e a dobram para a frente, de modo que ela se assemelhe a uma colher; depois levantam rapidamente a língua jogando parte da água no interior da boca. O resto se espalha em volta do animal e o resultado é sempre espalhafatoso, barulhento e um tanto caótico. Quem já observou um gato beber água, discreto e elegante, talvez já tenha se perguntado como cada movimento da língua leva água ao interior da boca.

Cientistas dos departamentos de engenharia do MIT e de Princeton, duas das melhores universidades dos EUA, filmaram diversos gatos bebendo água com câmaras de vídeo de alta velocidade. Durante a ingestão da água, a língua sai da boca, toca levemente a superfície da água e volta para o interior da boca. Isso ocorre quatro vezes por segundo, mas, como entre cada movimento a língua permanece por 100 milissegundos no interior da boca, o ciclo de sair da boca, tocar a água e voltar para a boca leva aproximadamente 150 milésimos de segundo.

Com uma câmara de alta velocidade, é possível observar em velocidade reduzida tudo o que ocorre nesses 150 milissegundos. O gato posiciona a boca 3 cm acima do nível da água (todos os gatos usam a mesma altura). Primeiro, a língua desce em direção à água a uma velocidade que chega a 50 cm/seg. A após quase 50 milésimos de segundo, a ponta da língua, dobrada para trás, toca a superfície da água sem penetrá-la. O toque dura menos de 2 milissegundos e imediatamente a língua é recolhida em direção à boca do gato, subindo com uma velocidade máxima de 78 cm/seg.

Durante a volta da língua, forma-se uma coluna de água que liga a ponta da língua à superfície da água. Essa coluna se rompe quando a língua está quase na boca do gato e a maior parte da água presente na coluna volta para o recipiente. Mas como a coluna de água se rompe entre a língua e a superfície do líquido, parte da coluna, uma gota, fica aderida à superfície da língua e é ingerida. Assim, gota a gota, quatro coletadas por segundo, o gato abate sua sede, silenciosamente, sem espirrar água em sua volta.

Com base nos dados coletados a partir da análise dos filmes, os cientistas construíram um cilindro, cuja superfície é idêntica à da língua, capaz de baixar, tocar a água e subir, imitando a língua de um gato. Com essa engenhoca eles simularam o que ocorria se operassem a língua mais rápido ou mais devagar que o gato e também a diferentes distâncias da superfície da água.

Eles descobriram que a distância e a velocidade com que o gato movimenta sua língua é a que produz a maior gota de água na língua quando ela entra na boca. Ou seja, o gato "descobriu", ao longo da evolução, como otimizar esse mecanismo capaz de transportar a água para a boca.

Os cientistas também determinaram que a inércia da água é o fator determinante nesse processo e que a natureza do líquido e da superfície da língua tem pouca influência na eficiência do processo. É por isso que esse método serve para beber água, leite ou mingau.

Agora os engenheiros estão testando essa língua artificial como parte de um robô capaz de transportar quantidades precisas de líquidos.

Se o suspiro da fã mudou minha maneira de observar Caetano Veloso, essa descoberta aumentou meu prazer de observar um verdadeiro gato bebendo água. É para isso que serve a ciência.
(O Estado de SP, 13/1)

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